Artigo: o trânsito e a “carteirada”

O trânsito é um espaço de relações igualitárias. Por não sabermos lidar com essa igualdade, buscamos a qualquer preço um tratamento diferenciado. Texto de Daniel Menezes

Ultimamente, tem-se discutido bastante sobre o ritual brasileiro: “você sabe com quem está falando?”. Ou, ainda, “com quem você pensa que está falando”? Trata-se, na verdade, da famigerada “carteirada”. Esta, indubitavelmente, é muito mais uma afirmação do que uma indagação, cujo escopo é manifestar que o outro ocupa um lugar social, cultural e moral de menor relevância.

Há poucos meses, o programa Fantástico da rede Globo exibiu duas reportagens que chamaram atenção, precipuamente pelas seguintes frases: “cidadão não, engenheiro civil formado, melhor do que você” e, também, o caso do desembargador, Eduardo Siqueira, que dispôs à Guarda Civil de Santos, São Paulo, que “decreto não é lei”, a fim de não cumprir uma medida de segurança contra a covid-19. O erro, e isso nos parece evidente, é que todos esses gestos são marcados pelo forte traço do autoritarismo.

Acontece que “o buraco é muito mais embaixo”.

Explico, amigo leitor: no Século XVII, o fatídico Frei Vicente do Salvador apontava que, no Brasil, ninguém é repúblico. Isso porque as pessoas não se preocupavam com o bem-estar coletivo, senão com seus próprios interesses. Portanto, trata-se de uma lógica colonial que o país não conseguiu romper até os dias de hoje. O “sabe com quem está falando?” é, sem sobejo de dúvidas, a aversão ao sistema democrático, igualitário, republicano.

E o que isso tem a ver com o trânsito?

Ora, o trânsito é um espaço de relações igualitárias, ou seja, qualquer pessoa está sujeita a regras de trânsito, seja advogado, professor, médico, negro, branco, judeu, católico, protestante etc. Posto que se em um determinado lugar houver uma sinalização proibitiva, ninguém deve estacionar. E é justamente por não sabermos lidar com a igualdade que buscamos a qualquer preço um tratamento diferenciado.

Enfim, caro leitor, cara leitora, enquanto não temos remédio para esse comportamento danoso que existe há séculos, sugiro adotarmos, mesmo que por tempo determinado, a expressão norte americana: “Quem você julga que é?” (Também conhecida como “Who do you think you are?), rito igualitário, usado por eles para advertir o “espertinho” que tenta tirar alguma vantagem. Como diria Roberto DaMatta: é gritante a inversão simétrica das duas sociedades.

*Daniel Menezes. Agente de Trânsito na Cidade de Lorena, São Paulo. Bacharel em Direito. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Faculdade de Ciências Humanas do Estado de São Paulo. Pós-graduando em Direito de Trânsito pela faculdade Legale.

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