Por Malu Fontes – Doutora em Comunicação
Alguns pontos:
Acho muito errado agentes da Transalvador, como quaisquer outros agentes públicos, gravarem propositadamente, e com a intenção de jogar na rede, a imagem de quem quer que seja.
Mas..
1 – … Zé Eduardo, e não só ele, mas vááários programas, de váááárias emissoras, locais e nacionais, nunca viram nada demais em exibir – e com isso obter muita audiência e consequentemente ganhar muito dinheiro – imagens de pessoas, sejam famosas ou anônimas, em situações absurdamente constrangedoras. Repito: tanto Zé Eduardo quanto outros programas e outros apresentadores passaram a vida e fizeram carreira e fortunas exibindo a imagem de pessoas sem o seu (delas) consentimento e sem questionar se essas pessoas têm/tinham ou não têm/tinham direito à privacidade e à própria imagem.
2 – Esse formato de atração televisiva sempre explorou imagens de gente que teve sua imagem, gravada à revelia, na porta ou dentro de delegacias ou em outros estabelecimentos públicos, portanto imagens sendo gravadas por agentes públicos ou com autorização destes. Assim, não nos esqueçamos do ônzimo mandamento, fruto dos tempos Pós-Joesley: quem com áudio fere, com ele é ferido/quem com vídeo fere/com ele é ferido. Os delegados, os agentes policiais sempre autorizaram a filmagem de pessoas que estão sob a abordagem policial ou sob a custódia do estado. Alguém já perguntou se essas pessoas concordavam em serem filmadas ou expostas? Isso quando não são eles mesmo que, na rua, filmam pessoas nas operações e mandam para seus apresentadores preferidos, pois cada um dos apresentadores tem seus amigos fiéis na Polícia e de alguns recebem imagens exclusivas. Teve até delegado medonho que se elegeu deputado usando como bandeira de campanha a abordagem policial na periferia, devidamente acompanhada, às vezes ao vivo, por emissoras de TV.
3 – Ao emitir uma nota, a Transalvador admite que seus agentes não devem filmar abordagens para jogar na rede. Pelo teor da nota, ao destacar a expressão “haverá desdobramentos internos”, infere-se que o agente que filmou ou quem divulgou ou quem fez as duas coisas, ou o grupo todo da operação, será punido ou demitido. Assim, a nota cria um precedente e um problema de imagem para a Transalvador em termos de repercussão pública. Primeiro precedente: a partir de agora, qualquer cidadão comum que passar por supostos constragimentos causados por agentes da Transalvador, sobretudo registro de sua imagem seguido de publicização da mesma, terá direito a uma nota distribuída publicamente com o mesmo teor da nota pública sobre Bocão. Problema para a Transalvador: vai ser muito difícil para o grosso da população, que não terá acesso a todas as circunstâncias do caso e nada sabe de direito à privacidade e à própria imagem, compreender e aceitar que uma pessoa famosa seja parada numa blitz e quem acabe punido seja o agente de trânsito. E certamente os agentes da Transalvador não ficarão quietos.
Sim, EU, Malu, sei que a coisa não é esse reducionismo. Mas levante o dedo aqui quem achar que o POVO vai entender de outra forma, que vai entender as sutilezas da lei, que não pode filmar ninguém, que não pode distribuir imagem de ninguém… não é assim que a banda toca na cabeça de nenhum brasileiro, mesmo porque, para a maioria da população, todo mundo sabe como os agentes públicos se comportam. Gostemos ou não gostemos será assim: Bocão sempre mostrou o que quis e quem quis em seu programa. No dia em que ele dá ré na contramão e diz que bebeu, quem filma isso perde o emprego. Quero muito ler outras opções da população para interpretar esse episódio. Tipo: se pobre se confronta com autoridade, é preso. Se autoridade mexe com rico, a punida é ela. Que vai gerar barulho e polêmica, Fabrizzio Muller sabe disso e terá que enfrentar. Mas nada que uma gestão de crise de imagem, da Transalvador e de Bocão, não resolvam em dois tempos.
4 – Vamos abstrair e pensar na cena como meros observadores dela: se há uma blitz de natureza Lei Seca na rua, que raciocínio move uma pessoa, no meio da noite, num carro milionário, com criança dentro, a dar uma ré na NA CONTRAMÃO? obviamente isso não dá aos agentes o direito de filmar ninguém, mas vamos combinar que qualquer agente da lei teria a veia que leva sangue para o olho a ficar MUITO cheia? Vamos combinar de novo: se esse mesmo episódio tivesse acontecido com Uziel Bueno, com Casemiro Neto, desafetos de Bocão, qual seria o posicionamento do próprio? Ele não divulgaria, seja no seu programa de TV ou em seu site, ambos campeões de audiência? Outros jornalistas de Salvador, de TV e de jornal impresso, já foram exibidos ad nauseum em circunstâncias muito prejudiciais à sua imagem e que em nada diziam respeito ao interesse de outras pessoas.
5 – Em tempos de redes sociais, web, celulares com câmeras, agentes públicos que também têm seus defeitos e suas iras, o mundo não tá mais fácil para nenhum de nós. É bateu aqui, apanhou ali e sucessivamente. Black Mirror não é apenas uma série. É um metáfora da vida. Acabou o tempo em que só a TV exibia a imagem do povo. Agora o povo vai ao orgasmo com a imagem dos televisivos que ele, o povo, faz. A coisa era espelho. Agora derreteu e é tudo vidro. A TV me mostra. Mas eu também mostro a TV. E como ela não queria ser mostrada.
6 – Bocão tem todo o direito do mundo de estar possesso com a exibição de sua imagem? Claro que tem. Mas não pode esquecer de refletir o quanto quem tem a fama que ele tem, quem a construiu com os métodos que ele construiu, e num país em que é costume achar que a lei tem que ser seguida ao pé da letra só pelos anônimos, por gente que não somos nós, ao longo da vida, varias faturas PODEM chegar também para os instruídos e para os donos de posses. Em algum momento todo mundo vai experimentar como é viver num país “sem lei”. Pode dar ré na contramão? Não. Pode ser filmado por agentes e essas imagens se espalharem? Não. Mas tudo isso vai acontecer, sim, pois é Brasil. No dia em que as respostas forem todas sim ou todas não, par rodos, aí teremos um país civilizado. Eu sei que já estarei há muitos anos morta SE um dia isso acontecer. Para quem tem fama, na hora da ré é preciso ter em mente que o tsunami da repercussão com a chegada de cada uma das faturas, da fama e do tipo de método que se usa na vida, vai ser ENORME, seja tratando-se de episódios da vida privada ou de situações ocorridas no espaço público. Fama e método têm preço e ele não é baixo.
7 – Tudo isso faz lembrar o pedido de Marcelo Rezende e o consequente comportamento da Rede Record. Já muito doente, Marcelo Rezende pediu aos chefões da emissora do bispo para não explorar sua morte em reportagens na TV. Claro, obedeceu-se. Após o velório, a direção da emissora PROIBIU todos os programas da casa de se referirem à morte de Rezende.
Vejamos como a vida é: logo Marcelo Rezende, que não podia ver um cadáver. Só faltava exibir necropsia em IML e colocar câmera na ponta de balas que varavam corpos. Quando a morte era a própria, a dele, pediu expressamente para ser tratado diferente.
8 – O mundo entrou no tempo do “ônzimo” mandamento, o mandamento Joesley:
Quem com áudio ou vídeo fere, com áudio ou vídeo será ferido.
A fatura sempre vem. Para todo mundo.
Fonte: Correio 24 horas
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